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Uma reflexão pessoal


Marie



De dia, sou forçada a vender o meu tempo, a ganhar a vida numa linha de um armazém de embalagens. À noite dou por mim a gastar horas e horas – com igual frequência ingratas e estimulantes – a ler, a escrever e a editar para um grupo marginal de discussão comunista, algo que sempre assumi que passaria despercebido. Por isso, não há figura na história do marxismo com a qual me identifique mais, de uma forma profundamente pessoal, do que Paul Mattick (1904-1981). As suas ideias extremamente rigorosas, a sua motivação subjetiva apaixonada para lá da superfície, as suas lutas e dúvidas pessoais enquanto autodidata proletário com uma relação ténue e contenciosa com o marxismo académico, no entanto forçado a fazer amizade com professores para conviver com os seus pares intelectuais, e, acima de tudo, o paradoxo fundamental da sua abordagem brutalmente honesta: era um teórico obsessivo cuja integridade fê-lo nunca comprometer os seus princípios, mantendo-se convencido, ainda assim,  de que o seu pensamento, escrita e atividade não eram mais do que gotas insignificantes no mar revolto da história mundial.1

Mattick possuía aquilo que quase se podia chamar uma abordagem l’art pour l’art à teoria crítica social.2 Era motivado por uma compulsão interna urgente para chegar a uma compreensão coerente dos fenómenos que escrutinava e da estrutura conceptual marxiana a que para esse efeito recorria, mas nunca se preocupou muito em saber se lhe dedicavam alguma atenção ou o compreendiam.3 O que Mattick dizia de Marx também se lhe aplicava: “ele não era suficientemente professoral para sacrificar à propaganda o prazer do seu capricho intelectual”.4 Esta atitude deixa quase toda a gente perplexa, mas é o que me faz sentir uma afinidade tão rara com ele. Ele acreditava verdadeiramente que a emancipação da classe trabalhadora deve ser uma tarefa dos próprios trabalhadores. Educou-se a si próprio, escreveu e pensou por si próprio, e, se as massas se tornariam realmente capazes de se libertar da sua condição proletária e reconstruir e administrar por si próprias cada aspeto da sua sociedade, teriam certamente de aprender a educar-se e a pensar por si próprias. Não podes forçar ninguém à atividade – aí já não será uma atividade própria. A liberdade não pode ser atribuída por um procurador benevolente e iluminado, deve ser tomada por aqueles que se iluminaram a si próprios no e através do processo dessa tomada. É disto que se trata a grande tradição alemã do Bildung, de Goethe a Hegel, até Adorno, e a revolução proletária, se é para ser, será a sua realização a uma escala global – a realização da filosofia.5

Mattick estava convencido de que as suas teorias e análises, apoiadas nas de Marx, estavam corretas. Não de uma forma dogmática, invariável – ele mantinha-se sempre aberto a polir e a desenvolver as suas ideias pela discussão e autorreflexão, bem como pelo estudo e participação nos eventos históricos em curso –, mas nas suas impressões essenciais quanto às “leis motoras” fetichistas da sociedade capitalista. Também estou convencida disso. Em última análise, é por isso que ele pensava que os seus colegas de trabalho reconheceriam, através da experiência histórica das condições da crise capitalista e dos seus esforços dentro e contra elas, a verdade diante dos seus olhos, tal como ele a havia reconhecido. Podia simplesmente deixar as suas ideias à deriva, como uma mensagem numa garrafa, para aqueles que fossem à procura. E se não as encontrassem? Um demagogo à caça de produtos ideológicos, na melhor das hipóteses, não faria qualquer diferença e, na pior, reforçaria ainda mais a condição de passividade, de atraso intelectual e a mentalidade de seguidismo autoritário dos proletários. Uma compreensão instintiva e uma simpatia em relação a este tipo de perspetiva conduziram-me até ao anarquismo numa idade muito jovem. Mas aprendi rapidamente6 que quase todos os anarquistas são tão perpassados por fantasias de vanguarda, ou tão rápidos a passar por cima ou a ficar contra a sua classe, tão iludidos em relação à importância do discurso que vendem e à sua tutoria paternalista, quanto qualquer leninista7, e com frequência igualmente prontos a se misturarem com odiosos movimentos populistas e nacionalistas.



Por inerência, o capitalismo coloca os trabalhadores – e as mulheres trabalhadoras a dobrar – numa posição em que são tratados como imbecis, peões, crianças dependentes. O desejo ardente pelo comunismo é, em muitos aspetos, um desejo de dignidade, de reconhecimento mútuo, de respeito por uma comunidade de pares. Não há nada que odeie mais do que ser tratada com condescendência e como uma estudante. Qualquer conceção de “política radical” que consagre este tratamento exasperante enquanto atitude apropriada e necessária para com companheiros proletários deixa-me profundamente revoltada. Suspeito que Mattick se sentisse da mesma maneira, por razões parecidas, e este sentimento brilha através da sua escrita, aparecendo diante de mim em letras de fogo, a escaldar com uma verdade e sinceridade quase sem par em toda a literatura marxista. Para mim, só o apelo de Guy Debord e de Theodor Adorno são remotamente comparáveis – tal como me apaixonei por música e poesia, tal como o jovem Mattick escritor de ficção, eles começaram por empreendimentos artísticos, mas foram forçados a abraçar a teoria porque precisavam de compreender porque é que tudo era tão horrível e opressivo; também nunca quiseram saber de demagogias e sermões interesseiros. Mas Mattick lutou e sofreu mais, um indivíduo brilhante que viveu uma vida em que lhe cagaram em cima enquanto trabalhador manual acorrentado a um salário8, a lutar pela sobrevivência em períodos de desemprego, a debater-se com editores que dominam um jogo profissional cujas regras nunca aprendeu, ou aceitou. Não obstante os seus argumentos rigorosamente pensados e teórica e historicamente bem fundamentados, e a sua relutância em admiti-lo publicamente, havia claramente uma profunda motivação pessoal, tal como há para mim. Revejo-me nas suas lutas e sofrimentos e humilhações, nos períodos áridos de depressão em que não conseguia escrever, convencido da sua incompetência.9

As moscas à volta da carcaça da “esquerda” são atraídas por um altruísmo que tresanda a noblesse obligue, um dever de procurar justiça para uma virtuosa vítima algures, uma consciência culpada implorando que ajudem os desafortunados e que, para se aliviar, arranja alguma coisa para fazer, repetindo atarefadamente os tiques e os rituais a que chama ativismo.10 A minha atitude, ao invés, é a que discirno em Mattick – a fúria total ao exigir que me torne por fim um ser humano, e provar11 em cada palavra que escrevo que a escumalha de filisteus cujo controlo dos meios de produção determina o meu miserável destino não é, apesar de tudo isto, minha superiora. Nas palavras de Marx: “Eu não sou nada e eu devo ser tudo”.12



1. Ao contrário dos delírios de importância demonstrados por quase todos os radicais intelectuais e instigadores, apesar de se declararem “materialistas”. 

2. Que passou para o seu filho, que uma vez descreveu o marxismo como um hobby, como criar peixes tropicais. Paul Mattick Jr., ‘Radical Interpretations of the Present Crisis’ panel Platypus Review 56 (May 2013).

3.
Gary Roth, Marxism in a Lost Century: A Biography of Paul Mattick (Brill 2015), 185.

4. Paul Mattick, ‘Karl Kautsky: From Marx to Hitler’ in Anti-Bolshevik Communism (Merlin Press 1978), 2. Originally published in Living Marxism vol. IV, no. 7 (June 1939).

5. Marx, ‘Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Law. Introduction’ (MECW 3), 187. De acordo com Theodor Adorno, a onda revolucionária mundial de 1917-’23, que marcou o jovem Mattick, apontava para esta realização da filosofia através da abolição do proletariado, mas esta possibilidade “perdeu-se” e foi “abortada”, só restando nos apoiarmos na teoria crítica, encontrando a razão através dos destroços. Theodor W. Adorno, Negative Dialectics [1966] (Continuum 2007), 3.

6. Por muito que não possa deixar de admirar as lutas dos trabalhadores anarquistas que superaram a sua ideologia, e o maximalismo por princípio, ainda que abstrato e intempestivo, dos poucos grandes pensadores comunistas anarquistas, que insistiram em nada menos do que “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Joseph Déjacque, Carlo Cafiero, Johann Most, Luigi Galleani, Peter Kropotkin (antes da sua capitulação em 1914, tão repugnante quanto a de qualquer social-patriota).

7. Para uma crítica recente destas tendências em curso, ver A New Institute for Social Research, “The Struggle Within the Struggle” in Endnotes, ed,, That Summer Feeling dossier (2022).

8. Independentemente das ideias políticas ruinosas, Eugene Debs expressou na perfeição a forma degradante como a nossa capacidade intelectual é categoricamente negada: “O capitalista refere-se a ti como mãos de moinho, mãos de quinta, mãos de fábrica, mãos de máquina – mãos, mãos!... Um capitalista sentir-se-ia ofendido se lhe chamasses uma mão. Ele é uma cabeça. O problema é que ele é proprietário da sua cabeça e das tuas mãos” (discurso de 1908) Por isso é que a “absurda fábula de Menenius Agrippa, que torna o homem um mero fragmento do seu próprio corpo, se concretiza.” Marx, Capital vol. 1 (MECW 35), 366.

9, Roth, Marxism in a Lost Century, 184 & 241.

10. Ver Organisation des Jeunes Travailleurs Révolutionnaires, Militancy: The Highest Stage of Alienation (1972).

11. Até que seja possível usar meios de prova mais potentes.  

12. Marx, ‘Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Law. Introduction’ (MECW 3), 185.




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14 julho 2024
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