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Dínamo


Paul Mattick





Knittigen - membro da Associação de Proprietários;
McKinley - chefe da polícia;
Larkin - tenente da polícia.


I.


O professor Gray olhou para o relógio.1 O tempo tinha acabado, a sua conferência não podia durar mais do que uma hora e meia. Tendo já dito tudo o que queria dizer, restava apenas encontrar uma boa conclusão. Bebeu um gole de água e prosseguiu num tom renovado: “Pode soar fantástico, meus senhores, mas estou convencido de que, depois de mais um par de voos para a estratosfera, vamos encontrar as leis básicas que nos permitirão fazer das estrelas nossas criadas. O rádio emitido pelos raios cósmicos converte o nosso mundo num dínamo gigante, o que pode sem qualquer dúvida gerar mais eletricidade do que a que será alguma vez necessária para dar resposta às necessidades industriais e privadas da humanidade. Hoje, esta massa de energia ainda circula, por assim dizer, indomada, mas amanhã transformará radicalmente todos os nossos sistemas tecnológicos. Possibilidades inimagináveis abrir-se-ão ao desenvolvimento industrial e ao comércio. Até a era da eletricidade parecerá insignificante à luz da revolução tecnológica que se avizinha.”

O professor Gray fez uma vénia. O diretor da associação comercial disse mais algumas palavras de agradecimento ao orador e à audiência.2 Enquanto os aplausos continuavam, encaminhou o professor e alguns membros da direção para os escritórios da associação, onde tomaram bebidas e trocaram saudações. Antes de se despedir cordialmente de todos, o professor Gray confirmou que tinha recebido o cheque de 250 dólares. 

A apresentação foi discutida na cafetaria da associação. O professor Gray era o último sobrevivente de um grupo de investigadores do rádio que tinha tentado industrializar e comercializar os estudos deste elemento. Destes académicos e do professor Gray não faltavam histórias que, diga-se, pouco tinham a ver com o rádio em si. Gray conquistou alguma notoriedade ao testemunhar enquanto perito num julgamento contra uma fábrica de relógios luminescentes em Nova Jérsia.3 As mulheres que lá trabalhavam tinham-na processado por vários danos. Trabalhar na fábrica arruinara a sua saúde. Mas, antes da conclusão do processo judicial, que tinha sido sucessivamente adiado, as empregadas já tinham morrido e a fábrica entrado em falência. 

“Maldito rádio!”, lamentou Mr. Knittigen da associação de proprietários, sentado ao lado do chefe da polícia, Mckinley, e do seu tenente, Larkin, enquanto olhavam para o parque pela janela do restaurante. 

“Estão num processo de produção artificial de radioatividade”, disse o tenente Larkin, “que poderá resultar muito bem contra o cancro”. “Cancro”, escarneceu Knittigen, “quem é que não tem cancro por estes dias? As pessoas simplesmente comem demasiado e sem cuidado.” O chefe da polícia, Mckinley, anuiu e encheu os copos. 

Os três cavalheiros encontravam-se, como eles próprios diziam, para lá da primavera da vida. Notava-se que ocupavam posições importantes, ou que lhes pareciam importantes, com salários adequados. O tenente Larkin era o único dos três que ainda mantinha uma aparência esbelta. A conferência do professor tinha-o deixado de bom humor. Ele era com frequência requisitado não para falar do tópico do rádio, mas do gás lacrimogéneo, e ainda assim reconhecera na conferência do professor inúmeras implicações para o seu trabalho. Não fornecia o rádio colossais oportunidades para melhoria do armamento? O gás já estava ultrapassado, como quase tudo à disposição do exército. Mais cedo ou mais tarde, tudo isso perderia o sentido. 

Alternando o olhar entre o parque e o chefe da polícia, Knittgen interrompeu o raciocínio de Larkin: “Horrível, toda aquela lixeira com jornal. É uma vergonha deixarem estes vagabundos dormir no parque.”

“Isso vai acabar em breve”, justificou-se Mckinley, “o frio vai afugentá-los.”

“Com uma vista como esta, não admira que já não consigam vender mais propriedades aqui!”, resmungou Knittigen. 

Larkin riu-se. “Haverá uma guerra em breve, e não terás de te preocupar, meu amigo. Vai fazer de todos nós bons soldados”.

“Pode não ser bem assim se a coisa não der em nada.”

“Bem, ainda estamos longe de uma coisa dessas. A minha mulher”, acrescentou Mckinley, “até pensou que o clima na costa lhe faria bem, mas mudou de ideias depois do voo do Balbo.” 4

“Um oficial de artilharia disse-me que as nossas armas antiaéreas se estão a sair muito bem. Nove tiros certeiros em dez.”

“Se o professo Gray se despachar, isso não vai interessar para nada”, disse Larkin, “como tu próprio ouviste, os raios cósmicos podem destruir seja o que for.” 

“Sim”, zombou Knittigen, “podíamos usá-los para abrir buracos profundos nas montanhas mais espessas, podíamos escavar o Vesúvio e aquecer as nossas casas, mas infelizmente não vamos viver o suficiente para ver nada disso.”  

“Acontecem todos os tipos de milagres durante as guerras; há mais invenções do que em qualquer outro período. Pensa só na forma como os alemães extraíram nitrogénio do ar durante a Primeira Guerra Mundial. Consigo facilmente imaginar que em breve teremos aviões que funcionarão sem combustível e tripulações. Poderás direcionar para objetos inimigos feixes mortais através de um refletor parabólico, tudo de uma localização central. Isso poria um fim a fortalezas, fábricas, depósitos de munições, e deixaria tudo magnificamente limpinho.” 

“Que é que isso nos vai trazer de bom”, disse Knittigen, “vamos chegar à bancarrota antes da próxima guerra, é tudo uma fantasia! Um dínamo mundial! O que é que íamos fazer com ele? Mesmo a fatura mais pequena é inútil se ninguém a pagar. Se hoje em dia te queres livrar de alguma coisa, tens praticamente de a oferecer. E mesmo que Deus decida fornecer-nos energia de graça, estaríamos sempre à beira da bancarrota. Quem é que pode esperar por uma nova era? Quem não acompanhar a pedalada, não vai ter um futuro. Eu gostava era de que a associação comercial nomeasse um académico que me explicasse como é que posso cobrar as minhas rendas!”

“Em casos práticos como esse, a tua melhor aposta é chamar a polícia”, afirmou Mckinley, “500 despejos são decretados diariamente, e é difícil acompanhar este ritmo.”

“Difícil acompanhar? Meu amigo,”, Knittigen agora estava irritado, “só podes estar a brincar! Quem é que tu já despejaste? E a Zona Sul? Se as coisas continuam assim, vai tudo deixar de pagar.” 

“Há demasiados desempregados. Como é que os pobres diabos se aguentam?”

“Pobres diabos? Estes malditos pretos são tão manhosos quanto porcos. Vivem tantos à borla, mesmo aqueles que têm dinheiro tentam safar-se sem pagar. Desempregados? Não podemos fazer nada quanto a isso. Contam com a tua boa-vontade. Os tribunais deixam-me doente. Esperas três meses por um despejo, e ainda temos de pagar as despesas.”

“Hey, pá,” virou-se abruptamente Knittgen para Larkin, “em breve visitamos os teus edifícios. A sério! Vamos montar uma equipa não só para pôr essa gente de lá para fora, mas também para assegurar que nunca mais voltam.” 

Knittigen inclinou-se de novo para o chefe da polícia, “As coisas não avançam suficientemente rápido. É preciso dar-lhes uma verdadeira lição de uma vez por todas. Acham que as coisas vão ficar como estão. Os cassetetes não chegam. Quando os pretos perceberem que é a sério, ou vão pagar ou saem porta fora. Umas quantas pancadas farão maravilhas. As coisas têm de ser tratadas de uma forma muito diferente. Não em pleno dia, mas de noite e de surpresa, quando ninguém estiver à espera. Sem uniformes também; três polícias juntos são o suficiente para pôr em sentido a rua inteira. Um par de minutos chega para que uma bela e pequena marcha te arrase.” 

Até que era bem jogado, pensava McKinley, enquanto Knittigen falava com ele de forma mais insistente e firme. Sim, talvez valesse a pena ter a associação de proprietários do teu lado. A polícia tinha uma má reputação, ainda manchada por uma série de incidentes questionáveis. Era altura de dar algum uso ao dinheiro dos contribuintes. Os senhorios poderiam ser muito úteis nas próximas eleições. Afinal de contas, quem é que se oporia a pôr os pretos no lugar? E se houver mesmo um tumulto, que mal é que isso fará, até pelo contrário! “Vamos ver”, disse Knittgen. “Vamos ver”, disse também para si próprio. 

Esvaziou o copo e disse adeus. Larkin acompanhou-o. 

Knittigen pediu outra garrafa. Estava preocupado e não queria ir para casa. O parque desapareceu lentamente num cinzento pálido. Apenas algumas janelas dos grandes hotéis se mantinham iluminadas. Knittigen contou-as. Está tudo vazio, pensou, o mercado imobiliário tinha ido parar às urtigas. 

O empregado de mesa ligou o rádio. Knittgen seguia o ritmo da música com os seus dedos, tamborilando contra o copo de vinho. Moviam-se cada vez mais lentamente à medida que a voz de Bing Crosby se tornava mais terna: “É uma sensação tão doce, mas será amor, amor verdadeiro?” Para ele é fácil, pensava Knittigen. Cem mil por uma canção minúscula, e eu tenho de aguentar estes pretos por menos de um décimo disso. Que mundo louco! 

A cidade estava a poupar luz. Apenas um terço da iluminação pública estava acesa. Phyllis não se importava; os homens passavam demasiado depressa com a luz mais intensa. Enrolou as meias de algodão nos joelhos. Soprava o vento de leste, sinal de que ficaria mais frio. “Ninguém tem dinheiro hoje em dia.” Phyllis sonhava com um casaco de inverno, mas só se dispunha a pagar metade do preço. Cada vez mais cansada e desanimada, tentava com um sorriso os transeuntes que passavam: “entra, rapaz!”

A rua não era particularmente agitada. Tinha só algumas lojas. Metade dos residentes vivia de assistência social. Conservas, fruta seca, toucinho e farinha eram trazidos para casa. As pessoas compravam muito pouco. Mas havia muitas miúdas novas a competir com Phyllis. A sua profissão estava condenada. Toda a gente sabia, as crianças da rua, os vizinhos, os parentes e os irmãos. Os familiares das miúdas saíam do apartamento quando chegavam os convidados; regressavam quando acabassem. Todos sabiam que era preciso ganhar dinheiro. As miúdas tinham de pagar a renda. E não era barata, apesar do chão podre, dos bichos, das paredes a cair aos pedaços, e do bairro degradado.

Os negros estavam encurralados dentro dos seus bairros. Em outras partes da cidade, os senhorios exiam-lhes três vezes mais, porque as casas saíam desvalorizadas assim que pessoas negras se mudavam. Os brancos mudavam-se imediatamente. As rendas no bairro negro eram preços monopolistas e tinham de ser pagos para evitar ser-se mandado para a rua. Os homens da associação de proprietários sabiam muito bem que o desemprego era mais elevado entre os negros; mas também sabiam das inúmeras miúdas negras, e, no fim do dia, eles também tinham de olhar pelos seus interesses, como qualquer outra pessoa. Eles eram senhorios, não filantropos.

O vizinho de Phyllis ao fundo do corredor, Johnny May, lia o jornal, “Claro, não há muita luz do sol na nossa cidade, mas também não há cheias.” Uma pena, pensou Johnny, assim talvez houvesse trabalho. 

Trabalho! Um fato azul claro com ombros acolchoados, botas amarelas, gravata de xadrez e um chapéu desportivo branco. Johnny recordou-se a si próprio que na estrada para o sucesso não há bancos para descansar. Depois de todas as outras perspetivas terem falhado, ele queria dançar sapateado e cantar. Atirou o jornal para o lado e começou a praticar, fazendo tremer o candeeiro de querosene em cima da mesa, o chão vibrar e as paredes rangerem. As pontas dos dedos dos pés eram tão ágeis quanto a sua voz: 

“e quando morrer, amor, o paraíso abrir-se-á para ti, amor, continuarei a cantar para ti na tua sepultura, amor, Tralala, tralala, meu amor.”

Johnny fez um trompete com as mãos e soaram os sons mais extraordinários. Quanto mais louco e demoníaco se tornasse o seu uivo, mais provável seria o seu sonho tornar-se realidade, “lalalalala”.

Parou de repente. Phyllis estava à entrada da porta.  “Johnny, estão a mandar os Washingtons para a rua!” 

“És doida, agora não.”

Mas Johnny já conseguia ouvir baterem à porta um andar acima. “Abram! Polícia”

A família Washington arrastou as mobílias para bloquear a porta. De há três dias para cá que esperavam este momento, cheios de medo. O Sr. Washington tinha estado sentado à janela todo o dia para que não fosse apanhado desprevenido. Tinham de manter os polícias e as transportadoras fora do apartamento. Ele sabia que eles não estavam autorizados a forçar a entrada, nem a quebrar a porta. Pura e simplesmente, era como se os Washingtons não estivessem em casa. 

Mas não valia a pena; três homens mandaram-se contra a porta, que cedeu de imediato. A mobília foi arrastada para o lado. 

Juntaram-se mais inquilinos nas escadas e nos corredores. Estavam agitados, gritavam para lá e para cá, amontoavam-se nas escadas para ver o que é que ia acontecer aos Washingtons. Todos eles sabiam que um dia lhes podia acontecer exatamente a mesma coisa. Sabiam porque é que os Washigntons se tinham atrasado com a renda. Iam chegando pessoas de bairros vizinhos; o edifício estava cada vez mais cheio. Juntaram-se pessoas na rua. As vozes em protesto ouviam-se cada vez mais alto. 

A Srª Washington tremia, apertando-se contra a parede. Torceu as mãos e murmurou de olhos fechados, “para onde é que vamos agora, para onde é que vamos.” As crianças esconderam-se debaixo da cama. O Sr. Washington também não se atrevia a olhar diretamente para os polícias. Não esboçou nenhuma palavra de protesto; temia tanto a multidão quanto o despejo. 

Os polícias não prestaram atenção nenhuma à família Washington. Só tinham olhos para a multidão agitada, aos empurrões e palavrões do outro lado da porta. Viram a multidão a crescer na rua e souberam que tinham de agir imediatamente, de forma enérgica, caso contrário a expedição inteira teria sido em vão. O comandante da esquadra sabia perfeitamente em que é que consistia a sua missão, o despejo tinha de ser levado a cabo por qualquer meio, não deixariam que um par de negros os impedissem.

Johnny e Phyllis tinham sido empurrados para a cozinha com os outros. Tentaram sair de novo, mas as pessoas alinhadas nas escadas formavam uma parede sólida. A primeira tentativa para empurrar uma mobília para a rua mostrou o quão absurdo era todo o empreendimento. Não era sequer possível passar pela porta de entrada. Enraivecido, o comandante da esquadra decidiu de improviso romper pela janela aberta.

“Atira essa coisa para a rua, tira-me isso daqui!”

As pessoas à frente da casa dispersaram. A cómoda voou para o chão e partiu-se em pedaços. As mãos agarraram a roupa suja, os frutos secos, os objetos espalhados pela rua. 

“Vá lá, rapazes, agarrem a cama, livrem-se desta tralha!”

O comandante da esquadra manteve a multidão afastada com o seu revólver. As crianças gritavam, agarrando-se à sua mãe também em lágrimas. Os olhos do Sr. Washington quase saltavam da cara. Dobrou-se, confuso. De uma porta aberta de um apartamento, no meio de todo aquele barulho, chegava o queixume de uma voz de rádio: “Quando a minha miúda não está ao meu lado, chove a toda a hora.”

Se o rádio estivesse sintonizado noutra frequência, poderia ter-se ouvido uma voz clara, indiferente, ao mesmo tempo: 

“Alerta policial: todos os veículos para South Wabash 5000 – motim!”

As sirenes gemiam; carros da polícia apitavam nas esquinas. Os polícias soltaram os bastões dos seus cintos. 

Massas de pessoas avançaram subitamente, atingindo os polícias atrás de si. Quem não conseguiu escapar para o lado, fugiu para dentro de casa. As pessoas nas escadas foram empurradas para os apartamentos, como numa armadilha. Os detetives começaram a bater nas pessoas. Phyllis, atingida pelo cabo de um revólver, tinha sido deixada inconsciente. O corrimão da escada desmoronou-se; os que caíram gritaram, como que possuídos. Algumas almas corajosas agarraram-se aos corrimões para se proteger. As portas foram fechadas com estrondo. Atrás delas, tremiam mulheres na esperança de ser deixadas em paz. Os punhos batiam contra as portas, exigindo a entrada. Os curiosos acorreram das ruas laterais e foram imediatamente engolidos pela confusão. A voz firme e fria no rádio repetia: “alerta policial: motim na Zona Sul, todos os veículos...”

Johnny estava entalado entre as pessoas. Era empurrado cada vez mais para dentro da sala. Um centímetro adiante, um ligeiro movimento para trás, e depois mais um centímetro para a frente. Depois soaram os tiros. O comandante da esquadra sabia que era este o seu momento; esvaziou todos os cilindros do seu revólver. Foram disparados cinco tiros. Johnny caiu, não mais ouvindo os gritos frenéticos de quem fugia do local, o estalar dos cassetetes em crânios frisados, nem as muitas sirenes e buzinas das ambulâncias e dos carros dos mortos. 

O comandante da esquadra reportou por telefone ao seu chefe, McKinley. O seu chefe congratulou-o e chamou imediatamente Knittigen. Knittigen chamou editores de jornais. Os jornais noturnos difundiram as notícias por toda a cidade.

“Motim dos de cor no South Side,”Multidão Negra Ataca Polícia”, “Multidão tenta travar despejo,” “Polícia atira em negros em legítima defesa.”

O presidente da câmara, contudo, tinha algumas dúvidas, o cenário de desemprego requeria extrema cautela. Ainda bem que isto só tinha acontecido com os negros. Os telefones tocaram toda a noite. Nos dias que se seguiram, os jornais continham apenas umas escassas linhas sobre eles. Era demasiado perigoso “dar relevo”.”

Editoriais que já tinham sido escritos foram postos de lado. Em vez de um apelo inflamado à paz e ordem, circulava um artigo do Professor Obgurn sobre a prosperidade vindoura. 

O Professor Obgurn sabia como tornar uma infusão de carne e sangue em discussões áridas e sem vida sobre economia. Não incomodava ninguém com números e estatísticas; para ele, a vontade era a raiz de todo o progresso. Sacudir o pessimismo generalizado era tudo o que era necessário para ultrapassar a crise. Com caras alegres podíamos até alcançar o paraíso. E, então, o Professor Obgurn escreveu sobre um futuro em que a luz artificial banharia as ruas e as tornaria saudáveis; sobre casas novas e apartamentos modernos com ventilação apropriada e controlo automático de temperatura. Sim, cada apartamento teria uma televisão, o seu próprio cinema, e dispositivos de leitura automáticos para cegos. Quem é que podia imaginar...?

Os eventos na Zona Sul foram tema de discussão em todos os gabinetes de assistência social. Em inúmeras partes da cidade, as resoluções em protesto recebidas pelo presidente da câmara acabaram em latas do lixo, por ler. Organizações de desempregados apelaram a uma manifestação conjunta no dia do funeral. A administração da cidade recusou-se a autorizar a marcha até ao último minuto, chegando por fim a um compromisso depois de acesas discussões com a delegação dos desempregados. A manifestação devia passar apenas por ruas acordadas previamente. 

McKinley estava desapontado, mas não valia a pena lutar contra o município. Queixou-se, amargamente, de que “mal se ganha alguma tração, chegam estes cobardes e estragam tudo de novo”. Knittigen concordou com ele e encarregou-se a si próprio de apresentar uma resolução contra o presidente da câmara à associação de proprietários.

O presidente da Câmara estava extremamente desagradado com toda a situação, mas o que é que podia fazer? Era inútil barrar a manifestação, porque, tal como havia sido informado, iria decorrer mesmo com a interdição. Se possível, era preciso evitar a agitação pública, caso contrário a feira de gado5 da cidade seria prejudicada. Consolou-se a si próprio pensando que a manifestação não seria muito grande, porque o resto das pessoas tinha pouca ou nenhuma simpatia pelos negros, que também eram extremamente cautelosos. O clero negro assegurou-lhe numa reunião que usariam os seus púlpitos para dissuadir os fiéis a participar. Fosse como fosse, por via das dúvidas, a milícia tinha sido mobilizada. 

Dentro da pequena capela que albergava os quatro rapazes negros mortos, trabalhadores negros e brancos passavam os olhos com mais curiosidade do que dor. Familiares vestidos de preto esperavam, choravam e exauriam-se. Quando as primeiras filas de manifestantes se formaram na rua, o tenente Larkin organizou as suas unidades em vários edifícios em pontos estratégicos. McKinley mandou mil polícias alinharem-se à frente da biblioteca e deu, ele próprio, as últimas instruções. Separados por cinco passos uns dos outros, os polícias deviam criar um cordão à volta dos manifestantes. Apenas nos casos mais extremos deveriam usar as armas, mas, se assim fosse: “Raios partam, sem piedade!”

O presidente da Câmara estava enganado. Milhares de desempregados invadiram as ruas da Zona Sul. O facto de estarem a defender os negros não era a questão central. Galvanizavam-se por um único pensamento: estavam a matar pessoas porque a renda não tinha sido paga. Caras negras e cabelos encaracolados não significavam nada ao lado disto; as pessoas estavam a ser espancadas até à morte porque se recusavam a dormir na rua. “Não basta mendigarmos trabalho sem esperança de o encontrar, passarmos fome, andarmos com roupas esfarrapadas, não basta definharmos de manhã à noite, nada mais do que definhar, agora é suposto rastejarmos até caves e levarmos os nossos filhos para as esquadras e, de lá, para os reformatórios. Será que enlouqueceram?”

“Abaixo os assassinos!”, “Combater os despejos!”, proclamavam os cartazes dos manifestantes. 

Os polícias brincavam com os seus bastões e sorriam. 

Com a cabeça enfaixada e inclinada para baixo, Phyllis estava diante dos mortos. Os caixões estavam prester a ser fechados. Phyllis não ouvia nada, nem o orador negro, nem a Internacional que tocava em fundo, da qual nada sabia. Não prestou atenção à melodia. Na sua cabeça, Johnny ainda cantarolava, o animado e esperançoso Johnny: “continuarei a cantar para ti na tua sepultura, tralala, tralala, meu amor.”

Marchou na manifestação que seguia os caixões, refletindo e chorando. Para que é que eram as bandeiras vermelhas, as canções, os cânticos; o que é que tudo isto tinha a ver com Johnny? O que é que ela tinha a ver com tudo isto? Fosse como fosse, marchou, e milhares marcharam com ela. 

Os sorrisos desapareceram dos rostos dos polícias, os seus comandos abrandaram e, pouco depois, pararam por completo. Farejavam um entusiasmo perigoso, e sabiam que , havendo uma luta, seriam espezinhados. A fila de uniformes azuis era certamente impressionante, a cada cinco passos um bastão. À sua frente a atrás deles, uma massa imensa de gente mantinha de pé e marchava. As ruas eram suas. Os elétricos estavam parados nos carris. Os carros procuravam desvios para chegar aos seus destinos. A multidão entoava as mesmas palavras uma e outra vez, ao som da mesma melodia: “e McKinley será em breve pendurado na macieira mais alta; unidos somos mais fortes.” O tenente Larkin estava muito desiludido. As áreas montadas que havia escolhido de forma tão estratégica tinham ficado sem efeito. As armas automáticas apontavam agora ruas desertas, as massas tinham-se afastado do percurso acordado. Não valia a pena enviar reservas para perseguir os manifestantes, nem mesmo o gás lacrimogéneo valeria de alguma coisa, o espaço de protesto era demasiado grande.

Phyllis estava cansada. Deixou a marcha, abrindo caminho pelo meio da multidão para se sentar nos degraus de uma casa. Que funeral tinha tido Johnny, mas porque é que aquelas pessoas cantavam tão alto, porque é que se tornavam cada vez mais alegres e barulhentas à medida que cantavam? Na verdade, não tinha sido um funeral, faltava a sensação de luto. O carro funerário já tinha passado, assim como os manifestantes, e os passeios estavam vazios. 

Phyllis levantou-se, com as costas a doer, os sapatos a apertarem-lhe os pés, e coxeou até casa. À medida que escurecia, baixou o chapéu sobre o rosto para cobrir a ligadura e ocupou o seu lugar de sempre em frente à casa, sorrindo e acenando, “Entra, rapaz!”

Nessa noite, Larkin e McKinley encontraram-se. “Quem é que poderia imaginar,” disse Larkin, “que a manifestação acabaria assim.”

Da próxima vez”, respondeu amargamente McKinley, “será diferente. Não podemos permitir que multidões como esta se juntem; têm de ser divididos em grupos mais pequenos. Caso contrário, será uma guerra total.”

Phyllis ficou parada durante muito tempo à entrada de casa e olhou para as estrelas. Só a luz das estrelas lhe chamava a atenção, e ela pensava que Johnny talvez estivesse agora algures ali. Ela não sabia que as estrelas emitiam raios que os professores estavam a tentar captar, na esperança de os usar para reavivar a economia, para que os Knittigens deste mundo pudessem receber as suas rendas sem dificuldade e para toda a eternidade. 

O mundo é como um dínamo gigante, dissera o professor Gray, apontando para alguns instrumentos. Mas, ciência aparte, quem é que podia ter dúvidas diante de uma multidão radiante e elétrica que cantara e oferecera vigorosamente a Johnny o seu último adeus? Talvez tivessem rastejado de volta para as suas tocas de rato naquele fim de tarde, cada um por si, desempregados, sem vida; verdade, a energia daquele dia tinha sido esmagada como por um relâmpago, apenas para se desvanecer no nada. Mas faltaria muito para que estas faíscas irregulares fluíssem numa onda poderosa e amplamente consciente que atravessasse toda a terra e  iluminasse as estrelas?



1. Mattick participou em vários dos eventos descritos nesta história, narrados na sua longa entrevista quarenta anos mais tarde com Michael Buckmiller; ver Paul Mattick, Die Revolution war für mich ein grosses Abenteuer: Paul Mattick im Gespräch mit Michael Buckmiller, Münster: Unrast-Verlag, 2013.

2. Mattick trabalhou numa associação comercial durante um curto período. 

3. A fábrica da Coporação Norte-Americana de Rádio localizava-se em Orange, NJ, onde o rádio era misturado com tinta e pintado à mão em mostradores de relógios e noutros instrumentos para que brilhassem no escuro. As jovens mulheres que trabalhavam na fábrica humedeciam os pincéis com as suas línguas para moldar as pontas. Ainda que os funcionários com cargos de gestão e os cientistas da firma usassem equipamento protetor, nenhum equipamento do género era fornecido às empregadas da fábrica, que também não eram informadas dos perigos de trabalhar com materiais radioativos. Desenvolveram rapidamente formas de cancro extremamente grotescas, e decorreram muitos anos de litigação até a fábrica ter interrompido estas práticas. Um dos cientistas da firma livrou-se de pequenas quantidades de rádio misturando-o em solo e oferecendo-o às empregadas para que fertilizassem os seus jardins. A própria casa do cientista foi demolida na década de 90 e o solo daquele terreno removido até uma profundida de 6 metros. Há alguns anos foi realizada uma limpeza a fundo a casas sinalizadas nas proximidades e ao local original da fábrica, que acabou por ser convertido em campos de futebol. 

4. Italo Balbo era um fascista italiano, aparento herdeiro de Benito Mussolini, e organizador da Marcha de Roma, que levou os facistas ao poder em Itália em 1922, inspirando o “beer hall putsch” de Adolf Hitler e dos fascistas alemães. O avião de Balbo foi abatido inadvertidamente pelos próprios italianos enquanto sobrevoava a costa da Líbia. 

5. Feira Internacional de Gado Vivo de Chicago.



Originalmente publicado em Neue Deutsche Blätter, Monatsschrift für Literatur und Kritik, Prague, Jg. 1 Nr. 9, June 1934, pp. 554-564.


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14 julho 2024
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